terça-feira, 28 de junho de 2016

David e o pacote de bolachas

Já falei mil vezes que trabalho em serviço de acolhimento, que são os atigos abrigos, e os casos de lá geralmente são bastante complicados, com vínculo familiar rompido, história de abuso ou de negligência. Vim pra área social preparada pra isso, mas vou ser sincera, tem alguns casos que eu me apego mais que os outros. E hoje eu ganhei um pacote de bolachas! (Já vai fazer sentido)

Bom, foi assim, ano passado, do meio do ano pro final, tivemos diversos problemas operacionais e financeiros e a prefeitura cortou vários serviços (que nem poderia cortar, mas aí já é outra história), e um deles foi a abordagem social.

Abordagem social é aquele serviço itinerante de pessoas que trabalham com os moradores de rua, e um dos primeiros casos que discutimos foi o de David (obviamente, como sempre, nome fictício). Quando uma amiga me falou sobre o caso dele, eu sequer sabia que a cidade tinha contratado um novo serviço de abordagem social... E essa amiga me falou sobre o caso do David, que era alcoolista, que passava mal na rua de tanto beber e queria ajuda para sair dessa vida.

Não entrando em muitos detalhes, como se tratou do primeiro caso e as tratativas ainda estavam meio bagunçadas, o caso não teve os encaminhamentos da maneira correta, de qualquer forma, David pareceu uma pessoa educada e amável, no pouco que conseguimos conversar, ele tinha contado que estava na cidade há algum tempo e que estava lutando contra o vício do álcool; tínhamos combinado que ele poderia sair pra beber um pouco caso a abstinência fosse muita, mas que não poderia chegar alcoolizado, pois os funcionários do serviço eram muito rígidos. E que nesse meio tempo, iriamos providenciar sua certidão de nascimento e RG para iniciar o tratamento.

Por alguma falta de comunicação, os funcionários do equipamento entenderam que David não tinha liberdade pra sair da casa, o que, pra ser sincera, me irritou bastante posteriomente, pois a priori, todos podem sair da casa, são excessões as vítimas de violência domêstica antes de conseguir medida protetiva e os que estão em algum tratamento que exija monitoramento por causa de medicação forte. Nenhum desses era o caso de David, portanto poderia sair. Contudo, negaram sua saída, e ele, na forte abstinência pulou o muro e fugiu da casa...

Eu e a equipe ficamos bastante chateadas, pois tinhamos conseguido sua certidão e agendado  dia para conseguir a segunda via de seu RG para darmos o encaminhamento para o tratamento que ele tanto queria. Por alguns dias ficamos sem notícias dele, até que ficamos sabendo que ele estava internado no hospital da cidade, com o braço quebrado pois havia caído de uma árvore!

Fizemos as tratativas necessárias e, quando teve alta, voltou para nós. Assim que retornou, atendemos David e fizemos um novo plano de atendimento, de maneira séria dissemos que ele tinha que ter paciência e quando precisasse e quisesse sair, podia nos ligar, e não precisava pular o muro.

David, por sua vez, nos contou sua história de vida, contou que foi órfão, criado em abrigos desde pequeno, depois conseguiu morar numa pensão, trabalhar e morar com uma companheira e teve um filho, que perdeu o contato. Era andarilho e acabou gostando de morar nas ruas de São Vicente. Ainda estava com o braço engessado e não tinha movimento nas mãos, então teve que aprender a ter paciência, esperar o braço melhorar minimamente para dar continuidade ao seu plano de atendimento.

Assim que recuperou minimamente os movimentos da mão, agendamos segunda via de seu RG. Enquanto isso, não saia da casa. O processo demorou por volta de um mês, um mês e meio. Nas últimas duas semanas, David pediu pra sair, disse que precisava sair da casa e prometeu que não iria beber. Porém teve uma recaída. Pediu desculpas e ficou na casa por mais ou menos uma semana sem sair, até que novameeeente, diz que precisa sair e promete novameeeente que não vai beber. Adivinha? Bebeu. Chegou alcoolizado na casa, com forte cheiro de álcool. Como ainda não deu início ao tratamento, perdoamos.

Então na sexta-feira, David vem falar comigo:

- Assistente, sabe se meu RG está pronto?
- David, não sou assistente social, sou psicóloga! - e sorrio, ele sempre confunde - Mas sim, está pronto, é que estamos sem vale transporte para ir buscar.
- Mas eu posso ir buscar, peço carona no ônibus.
- Hum, acho melhor ir acompanhado. Vou entrar em contato com o Centro Pop e ver o que consigo.

David concordou e saiu da sala. Falei com os técnicos do centro pop que disseram que não havia vale transporte, mas que um motorista iria a Santos fazer um serviço e poderia levá-lo. Contei do receio de recaídas, e a coordenadora me garantiu que o carro esperaria ele do lado de fora do poupatempo e eles retornariam juntos. Sendo assim, chamei David e contei da notícia.

- Obrigada Lorrana.. Lorrena... ai não sei falar seu nome.
- É Lorraine, mas não tem problema! Fique pronto que por volta das 14hs um carro virá buscá-lo.
- Obrigada mesmo! Estou muito feliz! - Respondeu David, e foi se arrumar pra sair.

Tudo certo. David pegou seu RG novinho.

Então ontem, assim que chego no equipamento, David está parado na porta e pergunta se pode falar comigo. Abro a sala e faço que ele pode entrar.

- Lorrane, eu queria ir no banco ver se tenho PIS...
- Tudo bem, vou ver se tem alguém pra te acompanhar.
- Ah, mas eu posso ir sozinho, não quero dar trabalho.
- Não é trabalho nenhum, peço pra alguém ir com você. - respondo.
- Ah, deixa pra lá, acho que meu braço está doendo ainda... Vou outro dia.
- Tudo bem.

E saiu da sala. Percebi que ele ficou chateado quando disse que pediria pra alguém acompanhá-lo; Segui meu dia normalmente.
Então hoje, quando cheguei, novamente David me espera perto da porta da minha sala, e diz que quer conversar. Da mesma forma que fiz ontem, abri a sala, coloquei minha bolsa em uma mesa, puxei duas cadeiras.

- Então Lorrane, posso ir hoje no banco?
- Claro, vou ver se tem alguém pra ir com você - levantei, fui até a porta e perguntei se tinha funcionário disponível. Tinha uma. Me voltei pra ele e perguntei se estava tudo bem.
- Tá sim Lorrane. Eu dei mancada, agora tem que ir acompanhado, tudo bem. - E concordou com a cabeça. Foi se arrumar, entreguei seus documentos e ele saiu acompanhado de um funcionário.

Algumas horas depois eles retornam e David entra na minha sala com um sorriso de orelha a orelha.

- Deu tudo certo! Não tinha PIS, mas tinha juros, tirei R$ 55,00 reais! - E levantou as mãos e foi tirando coisas de uma sacolinha plástica. - Já fiz compras, tem aqui dois pacote de balas e um pacote de bolachas e o troco eu guardei. - Então separa um pacote de balas pra ele e coloca o outro na minha direção com o pacote de bolachas.
- É pra eu guardar aqui? Quando você quiser pode pedir que eu pego pra você comer.
- Não, Lorrane, é pra você, comprei pra você, pra agradecer pela ajuda! - respondeu com um sorriso ainda maior que o anterior, se é que era possível.
- Obrigada! Já vou pegar uma bala aqui pra mim então.

E David saiu da sala sorrindo e distribuindo balas para os demais acolhidos da casa.

Ainda não comi o pacote de bolachas, mas voltei pra casa com o mesmo sorriso que ele. ;)

Tem muita gente nessa área que diz que não é certo aceitar presentes dos atendidos. Eu concordo que não temos que aceitar presentes caros e que não devemos nos aproveitar da ingenuidade deles, mas tem algumas coisas que não podemos negar: Eles criam vínculos conosco, e negar presente vindo do coração deles pra mim é desfeita. A cara de satifação dele por me dar alguma coisa era impagável, e eu seria incapaz de negar isso.

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