quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Crônicas do CRAS - Coincidências

Lá onde eu trabalho é um equipamento público. Parece ser uma casa antiga que foi (mal) utilizada para atendimento. Do lado direito há três salas de atendimento técnico e do lado esquerdo há a recepção e a coordenação, separando elas há um espaço vazio que não é utilizado pra nada e há um espaço na frente que seria um local de espera, com um banco daqueles grandes de madeira.

Aquele banco de madeira foi onde eu conheci pela primeira vez a dona I., é uma senhorinha de pele escura, baixinha e bem magra; ela estava sentada no cantinho do banco falando sozinha. Ninguém a atendeu, ela estava aguardando sua técnica de referência; os demais usuários sentavam ao lado dela e quando percebiam que falava sozinha, se afastavam.

Agora, depois de oito meses de prefeitura, eu já conheço I., converso com ela, vejo melhora constante em sua sanidade mental. Ela é alcoólatra em frequente tratamento, mora num local que ela apelida de 'sítio', mas na verdade é um mato a céu aberto, no qual ela cria animais e tem algumas plantas. Já foi estuprada lá (acreditamos que mais de uma vez) e uma vez estava bem deprimida e chegou dizendo que "até o gato a abandonou". É uma história triste, e ela mesma consegue reconhecer que só bebe porque acha que é só isso que é verdadeiramente dela. Há meses não a vejo falando sozinha no banco.


Hoje foi um dia calmo (o que é bastante incomum), nenhum dos agendamentos compareceu na parte da manhã, e houve pouca demanda espontânea, uma delas foi a Dona I., que chegou bastante suada, pois era um dia bem quente e abafado; seu alcoolismo lhe deu diversos problemas de saúde e ela tem que fazer exames constantes na cidade vizinha; hoje ela necessitava de um vale transporte para um desses exames.

Ela entrou pelos portões abertos e logo a reconheci e a saudei com um "boa tarde!" animado, que me respondeu com a mesma animação, questionei do que ela precisava hoje e ela entregou o papel para retorno e retirada de resultados de exames.

Como de costume perguntei como estavam as coisas e conversamos um pouco, me contou que o médico que fez o exame era bonito mas que ele havia gostado de seu amigo e não dela e demos bastante risada, dei o cartão que tem duas passagens pra ela ir e voltar e ela agradeceu dizendo que colheria flores para mim.

Mais tarde, no mesmo dia, chegou uma moça com uma bebê de colo, foi atendida pela recepção que me questionou o que fazer, pois ela disse que foi expulsa de casa. Depois das devidas apresentações, conversamos.

- Meu amor, quantos anos você tem?
- 17.
- E o que houve?
- Meu marido começou a ficar agressivo e eu fugi de casa, ele ia me agredir, então saí com a bebê.
- E você não tem pra onde ir?
- Não...
- Onde estão seus pais?
- Meu pai eu nunca soube, minha mãe é alcoólatra e vive por aí na rua, nunca sei onde ela está.

Nessa hora, a Talita (Recepção) me diz:

- Ela é filha da Dona I.!

Viro pra ela e pergunto:

- Sua mãe se chama I.?
- Sim.
- Ela esteve aqui hoje.
- Ah. Ela apareceu em algum lugar, é? - Respondeu R. visivelmente ressentida.
- Sim, ela veio buscar auxílio para fazer exames, ela está se tratando do alcoolismo e está bem melhor, lúcida na maior parte do tempo, você deveria vê-la! Ela fala bastante da netinha...

R. não respondeu, e não pareceu muito feliz com a ideia. Segui com o atendimento e consegui, com ajuda da sub diretora, um carro para levá-la ao serviço especializado.

Mas que coincidência, algumas horinhas antes para R. ou algumas horas depois para Dona I. e elas poderiam ter se encontrado. De vez em quando temos algumas histórias bastante interessantes, fora da correria.

Amanhã terei minha primeira experiência com uma desapropriação... Acho que vou estudar!

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